sexta-feira, junho 23, 2006

Dia arrastado de ressaca, folheio a revista 6ª do Diário de noticias e deparo-me com este texto:

O Namorado

Sento-me à janela a pensar. É este vidro que me separa da chuva. É esta chuva que separa do mundo. E já não sei o que é sentir o vento fresco bater na cara. Desde que vivo nesta casa, com ela, que não sinto o cheiro a terra molhada. Não tenho fome. A prisão em que ela me tem revolta-me o estômago. Mas talvez seja eu que me prendo a ela. Apesar do ódio, apesar do asco por aquela pele oleosa e vermelha. Na verdade ela é muito bonita. Quando a conheci não sabia como ela era. Via só a rapariga bonita, os cabelos negros, os olhos claros. Pouco tempo depois de nos começarmos a amar, vim viver com ela. Assustei-me com o estado da casa. O pó de meses, não me admirava se de anos, acumulava-se em todos os móveis. Bolas de cotão moviam-se pelo chão, ao ritmo dos nossos passos. Mas eu limpava, e tudo continuava sujo. Como se fosse um estado de espírito da casa. Ela também se deixava ficar a dormitar, todo o dia, ora sobre a cama, ora estendida no sofá. E a beleza dela ia-se afogando num cheiro a sujidade humana, a cansaço extremo.
Quando fazíamos amor, ela olhava-me, e algo dentro dos olhos dela me parecia vivo. Então eu tinha esperança. Ela andava cansada, mas quando recuperasse as energias ia ser só mais uma rapariga normal. E eu tinha vontade de fugir. Mas ia ficando, adormecendo ao lado dela. A primeira vez que eu a vi fazer aquilo, senti o mundo a tremer debaixo dos meus pés. Eu tinha acabado de entrar na cozinha para fazer o jantar e ela estava sentada no chão. Tinha um homem deitado ao lado dela. No peito dele, na camisa branca, viam-se manchas de sangue. Pétalas de rosa de um vermelho muito escuro que se desenhava no tecido branco. Com uma faca ela ia furando a carne. Tinha vida dentro dos olhos, como quando fazíamos amor.
Não fugi, não disse nada. Fui fazer o jantar e esperei que ela se fartasse de estar ali no chão regado de sangue. Enquanto ela tomava banho puxei o homem pelos braços e levei-o para o quintal. Não demorou muito a enterrar porque a terra estava húmida. Continuo a enterrar todas as pessoas que ela mata. Não gosto dela. Não gosto de fazer amor com o corpo dela. Mas estou preso. Não sei que linha inquebrável é esta que nos liga. É este vidro que me separa do mundo. É esta chuva que me separa de mim.

Brutal...
Impossível ficar indiferente a este texto. Fenomenalmente bem escrito e de uma intensidade arrepiante. Que raça!

E pensar que foi escrito pela Liliana Moita, 18 anos, estudante de Ponte de Sor.

quarta-feira, junho 14, 2006

O mundo aldrabado


Um texto do Pedro Mexia no seu blog, Estado civil:

Eis um dos muitos motivos pelos quais eu gosto tanto de blogues. Um tipo passa o ano a ouvir frases como «Mas custa. Não se fode». E nos jornais e nas revistas nada, nadinha, nem traço disso, nem vestígios dessa realidade, apenas revistas femininas, revistas masculinas, maminhas, modelos, namorados no metro, publicidade, a mui trombeteada revolução sexual, avanço nos costumes, desde 1974 que não sei quê, a Merche, os ginásios, os umbigos, as discotecas, gente disponível, sem preconceitos, sociedade desinibida, segundo um estudo do ICS, segundo um estudo da Católica, segundo o Miguel Vale de Almeida, segundo a conferência episcopal, o hedonismo isto a civilização do corpo aquilo o Giddens aqueloutro. Nos jornais e nas revistas apenas isso, o chinfrim do mundo aldrabado e sem vergonha da sua aldrabice. Haja blogues que contem a vida como ela também é porque a vivemos ou ouvimos contada: «Mas custa. Não se fode».